13 jan Sistema Endocanabinóide
Dentre as drogas consideradas ilícitas no ocidente, a planta Cannabis sativa é a mais consumida: existem alguns estudos onde se observa que em torno de 4% da população adulta usa ou já usou.
O que a grande maioria das pessoas não sabem é que o uso medicinal desta erva remonta aos primórdios do surgimento da nossa própria espécie. Antropólogos teorizam que alguns exemplares do gênero Homo progrediu na luta por sobrevivência com outros hominídeos justamente pelo conhecimento avançado – guardadas as devidas proporções – que detinha de plantas como a Cannabis.
Milênios depois, a ciência – mesmo se debruçando intensamente na caracterização química de seus mais de 530 componentes bioativos – ainda não era capaz de gerar hipóteses passíveis de comprovação afim de explicar duas das características mais notáveis do uso recreativo desse vegetal: porque pequenas alterações químicas potencializavam o efeito da droga em até 100 vezes e, principalmente, porque seria virtualmente impossível um indivíduo sofrer uma overdose letal da substância (seria necessário, em teoria, a pessoa fumar cerca de 1269 cigarros de maconha em 24 horas).
Para suplantar este paradigma, alguns compostos derivados do delta-nove-tetrahidrocanabinol (Δ9-THC) – principal componente da Cannabis – foram marcados radioativamente em estudo experimental e, após sua indução, descobriu-se que os mesmos apresentavam tropismo por membranas encefálicas e que sua ligação se dava de forma saturável e estereo-seletiva. Tais indícios sugeriam fortemente a existência de receptores endógenos para a droga e foram estes achados que levaram à descoberta do Sistema Endocanabinóide (SEC): um aparelho fisiológico constituído de receptores e ligantes endógenos, conservado filogeneticamente, responsável por diversos controles relacionados à homeostase neuronal.
Os receptores, de acordo com a ordem de descoberta, foram classificados em CB1 e CB2: enquanto o primeiro é responsável pela maior parte dos efeitos psicotrópicos – além de serem o de maior abundância no Sistema Nervoso Central (SNC) – os receptores CB2 tem sua expressão majoritária no sistema imunológico, na micróglia e em condições patológicas como a dor crônica. A densidade dos mesmos é descrita na tabela 1.
DENSIDADE | RECEPTOR | |
CB1 | CB2 | |
Alta | Bulbo olfativo, hipocampo, estriado lateral, núcleos estriatais e cerebelo | Células do sistema imune |
Moderada | Prosencéfalo, lobo frontal, parietal e cíngulo, septum, amígdala, hipotálamo ventromedial, subnúcleo lateral do núcleo interpeduncular, núcleo parabraquial, núcleo do trato solitário e corno dorsal da medula | – |
Baixa | Tálamo, corno ventral da medula e demais núcleos do tronco cerebral | Micróglia |
Tabela 1 – Densidade dos receptores CB1 e CB2.
O mecanismo de ação de ambos são similares e culminam na hiperpolarização neuronal ocasionando a diminuição da liberação de neurotransmissores na fenda sináptica: o CB1, quando ativo, inibe a adenilciclase que, por sua vez, leva a um déficit na conversão de ATP em AMPc diminuindo a ação da Quinase A (PKA); com a redução da fosforilação dos canais de potássio – gerando a saída destes íons nas células pré-sinápticas – ocorre a inibição dos canais de cálcio sensíveis à voltagem que leva à dessensibilização neuronal.
Já o CB2 – que apresenta estrutura físico-química homóloga em 44% aos receptores CB1 – possui atividade inibitória das proteínas Gi que, por sua vez, inibem a adenilciclase ativando, assim, a cascata da proteína MAPK. Devido a estas características o SEC constitui
uma das exceções à lei da polarização dinâmica postulada por Ramon e Cajal em 1891 uma vez que seguem o sentido retrógado ao da transmissão sináptica.
Pouco tempo após a caracterização destes receptores a ciência se dedicou no estudo dos ligantes endógenos para o SEC dos quais dois são os mais relevantes quantitativamente: a anandamida (N-araquidoniletanolamida) – terminologia sânscrita para “felicidade eterna” – e o 2-araquidonilglicerol (2-AG). Enquanto o último apresenta alta seletividade para os receptores CB1/CB2 desempenhando ação agonista total para os mesmos, a anandamida é agonista apenas parcial para CB1/CB2 apresentando ainda baixa afinidade para TRPV1.
A síntese destes ligantes se dá por meio de precursores fosfolipídicos membranares de modo não contínuo, ou seja, são produzidos sob demanda nos neurônios pós-sinápticos sem armazenamento prévio vesicular com liberação direta na fenda sináptica ou via corrente sanguínea. Embora haja uma redundância considerável neste processo, a mediação e regulação da síntese é feita pelo acúmulo de íons de cálcio no neurônio pós-sináptico sendo este o passo limitante.
Para a produção de anandamida ocorre a ativação da N-aciltransferase (NAT) que converte a fosfatidiletanolamina e fosfatidilcolina em N-araquidonilfosfatidiletanolamina (NAPE) levando à hidrólise do NAPE pela N-araquidonil-fosfatidil-etanolamina-fosfolipase-D (NAPE-FLD), gerando anandamida; já no caso do 2-AG, a principal via é a da fosfolipase-C-beta-diacilglicerol-lipase: a FLCβ converte fosfoinositídeos membranares em 1,2-diacilglicerol que ao sofrer hidrólise pela DAGL forma o endocanabinóide.
Uma das ações descritas do SEC, não obstante, é sua relação com o circuito do prazer. Na visão clássica as drogas de abuso acionam este circuito por meio dos neurônios dopaminérgicos de segunda ordem no eixo ATV-NAc seja por ação direta nos terminais dopaminérgicos ou de modo indireto sob os inputs modulatórios; hoje, contudo, é aceito que os endocanabinoides contribuem para a homeostase motivacional por meio da definição de um setpoint atuando nos inputs de controle da via levando a uma relação inversamente proporcional: o SEC atua mantendo a homeostase motivacional.
Além disso, a compleição do SEC em sítios pertinentes à memória e sua ação na modulagem da mesma torna-se relevante quanto à promoção e edificação do sequestro de GABA para assim dificultar a solidificação de memórias aversivas. A ingerência desempenhada neste processo pelo Δ9-THC, com bloqueio da LTD e consequente translocação do setpoint para extinção de memórias aversivas, pode alterar significativamente o impacto de memórias conexas ao sistema de recompensa.
Ademais, nos últimos anos novos modelos foram postulados quanto a este sistema de modo que há suspeita, com razoável grau de legitimidade, da existência de pelo menos mais um receptor endógeno para canabinóides denominado até então de “receptor putativo do tipo CB3” além da caracterização de mais ligantes ainda pouco descritos. Cogita-se ainda a hipótese de fatores não associados serem desencadeadores de mecanismos integrantes do SEC: é descrito, a exemplo, que determinadas perturbações membranares são capazes de ativar a cascata de reação de hiperpolarização pré-sináptica num efeito equivalente aos receptores do tipo CB1 e CB2.
Dessa forma o SEC desempenha efeito modulatório geral em vias decisivas, como visto, nos fenômenos relacionados às desordens por uso abusivo de drogas uma vez que colabora para o estabelecimento de setpoints em múltiplos processos neuronais; fármacos com atividade modulatória do SEC, portanto, podem compor nos próximos anos um foco terapêutico na profilaxia de distúrbios relacionados a um amplo espectro de patologias neuronais, desde o próprio transtorno por uso abusivo de drogas até mesmo o Alzheimer.
Os EC não são armazenados em vesículas, sendo imediatamente liberados após a ativação pós-sináptica para atuarem na modulação dos neurônios pré-sinápticos, processo este denominado neurotransmissão retrógrada.
Atuam “sob demanda”: são acionados quando necessário e funcionam para reparar ou modular a função de outros mediadores.
Sua ação é encerrada com a captação nas terminações pré-sinápticas. Os receptores canabinóides se encontram inseridos na membrana celular, acoplados às proteínas-G, primeiras componentes no processo de transdução de sinais, e à enzima adenilato ciclase (AC).
O aumento do cálcio intracelular é fator desencadeante para que o precursor de endocanabinóide acoplado à membrana seja sintetizado, clivado e liberado
Após essa interação, há reações em vários componentes intercelulares, que incluem a inibição da AC, abertura dos canais de potássio, diminuindo a transmissão dos sinais e fechamento dos canais de cálcio voltagem-dependentes, levando a um decréscimo na liberação de neurotransmissores. Resultado final: diminuição da liberação de NT pelo neurônio pré-sináptico.
Com as regulamentações sendo definidas em vários países, espera-se que mais estudos e pesquisas para elucidar e trazer mais informações sobre a Sistema Endocanabinóide como a chamada Medicina canabinóide pode ser mais um instrumento dentro do arsenal terapêutico e preventivo de uma série de condições e patologias.
Dra. Isolda de Araujo
Médica Fisiatra
CRM-SP 107017
RQE 79985